A copa do apito

A copa do apito
08/08/2024 por Editorial

E os jogos que fascinam o povo são os mais truculentos. O Brasil naufragou num mar de contusões por isso mesmo: — porque sabia apanhar e não sabia reagir

Amigos, eis uma verdade inapelável: — só os subdesenvolvidos ainda se ruborizam. Ao passo que o grande povo é, antes de tudo, um cínico. Para fundar um império, um país precisa de um impudor sem nenhuma folha de parreira. Vejam a presente Jules Rimet. Nas barbas indignadas do mundo, a Inglaterra se prepara para ganhar no apito o caneco de ouro.

Vocês pensam que há algum disfarce, ou escrúpulo, ou mistério? Absolutamente. Tudo se fez e se faz com uma premeditação deslavada e na cara das vítimas. A serviço da Inglaterra, a FIFA escalou oito juízes ingleses para os jogos do Brasil. A arbitragem foi manipulada para liquidar primeiro os bicampeões e, em seguida, os outros países sul- -americanos. O jogo Inglaterra x Argentina55 foi um roubo. Uruguai x Alemanha, outro escândalo.

E nem se pense que a Inglaterra baixou a vista, escarlate de vergonha. Nada disso. Por que rubor, se ela é um grande povo e se tem, ou teve, um grande império? Vejam o sincronismo da coisa: — um juiz alemão deu a vitória à Inglaterra contra a Argentina, um juiz inglês deu a vitória à Alemanha contra o Uruguai. No jogo Argentina x Alemanha, foi expulso um jogador argentino. Terminado o jogo, cinco jogadores sul-americanos tiveram que sair quase de maca.

Valeu tudo contra o Brasil e, sobretudo, contra Pelé. O crioulo foi caçado contra a Bulgária. Não pôde jogar contra a Hungria e só voltou contra Portugal. Nova caçada. Sofreu um tiro de meta no joelho. Verdadeira tentativa de homicídio. O juiz inglês nem piou. Silva levou um bico nas costelas. Jairzinho foi outra vítima e assim Paraná. O árbitro a tudo assistia com lívido descaro.

E nós? Que fizemos nós? Nada. No último jogo, o Brasil apanhou sem revidar. Amigos, eu sei que os nossos jogadores tiveram um preparo físico quase homicida. Antes da primeira botinada, já o craque brasileiro estava estourado. Sei também que o Brasil não teve, jamais, um time. A nossa equipe era o caos. Por outro lado, faltou-nos qualquer organização de jogo, qualquer projeto tático.

Além disso, porém, a seleção brasileira acusou um defeito indesculpável e suicida. Como se sabe, esta Copa é uma selva de pé na cara. E, no entanto, vejam vocês: — o brasileiro lá apareceu com um jogo leve, afetuoso, reverente, cerimonioso. E havia um abismo entre

os dois comportamentos: nós, fazendo um futebol diáfano, incorpóreo, de sílfides; os europeus, como centauros truculentos, escoiceando em todas as direções.

Ainda ontem, o sr. Barbosa Lima Sobrinho escrevia um lúcido artigo sobre a suavidade do nosso escrete. Note-se que se trata de um acadêmico, que deve ter compromissos com as boas maneiras, a polidez, o trato fino etc. etc. Mas ele enxergou o óbvio ululante, ou seja: — o futebol vive de sombrias e facinorosas paixões. Durante os noventa minutos, são onze bárbaros contra onze bárbaros.

Claro que as palavras do sr. Barbosa Lima Sobrinho são outras. Mas o sentido, se bem o entendi, é este. Portanto, não tem sentido que o Brasil vá jogar contra os bárbaros europeus com manto de arminho, sapatos de fivela ou peruca de marquês de Luís XV. Eis a verdade: — o que dá charme, apelo, dramatismo aos clássicos e às peladas é o foul. A poesia do futebol está no foul.

E os jogos que fascinam o povo são os mais truculentos. O Brasil naufragou num mar de contusões por isso mesmo: — porque sabia apanhar e não sabia reagir. O ilustre acadêmico está rigorosamente certo. Hoje, depois do pau que levamos, aprendemos que o craque brasileiro tem de ser reeducado. Digo “reeducado” no sentido de virilizar o seu jogo. Amigos, o Mário Pedrosa está fazendo um ensaio sobre o futebol. É um pensador político, um crítico de artes plásticas, homem de uma lucidez tremenda. Ora, o intelectual brasileiro que ignora o futebol é um alienado de babar na gravata. E o nosso Mário Pedrosa sabe disso e foi um dos sujeitos que sofreram na carne e na alma o fracasso da seleção. Pois espero que, no seu ensaio, inclua todo um capítulo assim titulado: — “Da necessidade de baixar o pau.”

Dito isto, vamos escolher o meu personagem da semana. Podia ser o Paraná. Eu sei que, tecnicamente, ele deixa muito a desejar. Sei. Mas, contra os portugueses, Paraná deu um pau firme e épico. Mas eu prefiro Rildo. Que grande, solitária e inexpugnável figura. No meio do jogo, era tal o seu brio que dava a sensação, por vezes, de que ia comer e beber a bola. Foi um bárbaro jogando contra bárbaros. Amigos, o argentino que deu no juiz alemão lavou a alma de todo um povo. Pois o nosso Rildo, com suas rútilas botinadas, promoveu e reabilitou o homem brasileiro.

Nelson Rodrigues para O Globo, 25/7/1966

Publicado em "A Pátria de Chuteiras", Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, pp. 122-124.

Título sugerido pela edição do livro À sombra das chuteiras imortais (Companhia das Letras, 1993). A crônica foi publicada originalmente na coluna “Meu personagem da semana” sem título. (N.E.) 55 Nelson refere-se aos jogos Inglaterra 1 x 0 Argentina e Alemanha 4 x 0 Uruguai, pelas quartas de final. (N.E.)

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