Dia do Futebol: Matar ou Morrer

Dia do Futebol: Matar ou Morrer
19/07/2024 por Editorial

Dia 19 de Julho é Dia Nacional do Futebol e celebramos este dia com uma das crônicas de Nelson Rodrigues, que nos lembra da importância do futebol na nossa cultura e como o grande escritor exigiu garra da seleção em 1966

Amigos, se me perguntarem qual é o maior defeito do futebol brasileiro, eu direi: — a delicadeza e, reforço, a extrema delicadeza. De fato, não há na Terra um craque que tenha a polidez do nosso. O brasileiro é um tímido, um contido, um cerimonioso. Foi assim em 58, foi assim em 62. Nas duas Copas, os adversários já entravam de navalha na liga.

Ao passo que, até no foul,38 o escrete verde-amarelo era de uma suavidade impressionante. Vejamos em 58. O jogo Suécia x Alemanha39 foi uma carnifi cina. Eu estava vendo a hora em que os adversários iam arrancar a carótida uns dos outros para chupá-la como tangerina. Foram noventa minutos de uma ferocidade recíproca e homicida. Valeu tudo, rigorosamente tudo.

Pois o Brasil não fez um único e escasso vexame. Era de dar pena a correção dos nossos rapazes. Jogavam na bola e só na bola. Jamais o mundo vira um escrete tão doce e de uma inocência quase suicida. Um sociólogo que lá estivesse havia de fazer a constatação apiedada: — “O escrúpulo é próprio do subdesenvolvimento!”

O escrúpulo e mais: — a humildade, a lealdade, o altruísmo. No jogo Brasil x França, o árbitro comportou-se como um larápio. Não houve, em toda a história da Copa, um roubo mais cristalino e cínico. Tivemos que fazer três gols para que valesse um. E o escrete brasileiro nem piscou. Deixou-se furtar e só faltou beijar na testa do ladrão.

O pior vocês não sabem. Até 58, o Brasil fazia de si mesmo a pior das imagens. Sim, o brasileiro se considerava um facínora. E, no Maracanã, quando um de nós ousa um foul mais violento, o estádio vem abaixo. Por toda parte há quem esbraveje: “Cavalo! Cavalo!” Mas é uma injustiça. Muito mais brutal do que o nosso é o futebol da Inglaterra, da Alemanha, da França, da Itália, da Bulgária.

O meu amigo Antonio Callado viu, certa vez, um jogo de Inglaterra e Escócia. Foi um pau só, do primeiro ao último minuto. E, súbito, explode um sururu. Brigaram os 22 jogadores, o juiz, os bandeirinhas, as torcidas. A polícia montada teve de invadir o campo. No Brasil, o sururu é tão antigo, tão obsoleto como um quepe da Guerra do Paraguai. E quando um de nós dá um tapa as manchetes tremem e há uma comoção nacional.

A doçura, a cerimônia, a timidez do nosso futebol são defeitos gravíssimos. Um jogador brasileiro tem vergonha de pisar na cara do adversário caído. O europeu, não. O europeu não recua diante de nada. Vocês se lembram do jogo Brasil x Alemanha, aqui, no Maracanã. Foi uma partida medíocre, mas que teve um lance de epopeia.

Refiro-me à bola dividida entre Pelé e um alemão. Este não recuou, nem o brasileiro. E o dilema criado para ambos foi o seguinte: — matar ou morrer. O alemão preferiu matar e Pelé não quis morrer. O nosso levou vantagem pelo seguinte: — porque introduziu no choque a molecagem brasileira. Conclusão: — Pelé sobreviveu e o germânico saiu de maca.

A imprensa teve a reação própria do subdesenvolvido: — condenou Pelé. Se a coisa fosse na Alemanha, e a vítima, Pelé, o cronista de lá ia considerar a fratura um fato normal e intranscendente. Amigos, na Europa, o foul praticamente não existe. O juiz só costuma apitar quando um adversário estripa o outro.

E não há dúvida de que, por uma tendência natural e, ainda mais, por se tratar de um tri, vão caçar os brasileiros a pauladas. Outrora, o brasileiro babava de inveja e deslumbramento só de ouvir falar no inglês. Mas a verdade é bem diferente. Hoje, sabemos que o único inglês da vida real é o brasileiro. Sim, qualquer favelado nosso, desdentado e negro, é um monstro de boas maneiras.

Crônica de Nelson Rodrigues para O Globo, 28/5/1966

Publicado em "A Pátria de Chuteiras", Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, pp. 91-93.

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