A Amazônia é um dos temas mais complexos e estratégicos do Brasil, envolvendo dimensões ambientais, econômicas, sociais e geopolíticas. No trecho destacado da entrevista com o general Villas Bôas, registrada por Celso Castro no livro "General Villas Bôas: conversa com o Comandante", somos convidados a refletir sobre questões críticas que cercam a região, desde desinformação e narrativas distorcidas até pressões internacionais que colocam em xeque a soberania brasileira. Villas Bôas aponta a necessidade de equilibrar desenvolvimento e preservação, respeitando as particularidades locais, enquanto denuncia ações que, segundo ele, servem a interesses econômicos globais travestidos de preocupação ambiental. Essa visão levanta importantes questionamentos sobre como o Brasil enxerga, defende e desenvolve sua maior riqueza natural.
Coletamos aqui o trecho do livro, que pode ser adquirido através da internet, para fins históricos e educacionais. Não necessariamente compartilhamos de todas as opiniões políticas do general, porém sua manifestação é importante não apenas por sua posição e sim por mirar nas origens do problema.
A respeito da Amazônia, houve há pouco o episódio das queimadas e da fala do presidente Macron, dizendo que se tinha de pensar a questão inemacional a respeito da Amazônia. O senhor também fez um texto sobre isso no Twitter. O senhor poderia sintetizar sua preocupação, sua visão sobre a Amazônia?
Sobre a Amazônia, existe muita desinformação, até de caráter intencional, principalmente sobre os temas meio ambiente e questão indigena. Este "filtro" não permite que a realidade chegue aos centros econômicos culturais e políticos, impedindo que a população esclarecida, bem como as instâncias decisórias, posicione-se adequadamente. A grande imprensa tem parcela de responsabilidade.
Em nosso principal veículo de comunicação, a Rede Globo, alguns setores são dominados pelo politicamente correto. Em consequência, expõem os assuntos sob um enfoque desconectado da verdade. Ao nosso jornalismo investigativo tem faltado vontade ou competência para desvendar o que move e sustenta todo esse grande esquema de amplitude mundial. Se o fizesse, descobriria formas contemporâneas de imperialismo, movidas pelo grande capital, corporações, organismos internacionais e as ONGs.
Leia também: Enfrentando o Complexo Eco-Imperialista
É bem verdade que toda essa ampla e complexa ordem de coisas não encontraria condições de êxito se o Brasil não oferecesse passivos em todos os campos. Suas narrativas se impõem, colocando-nos em permanente atitude defensiva. Possuem ilimitada capacidade de estigmatizar ideias e pessoas que lhes são contrárias. Cito como exemplo expressivo o que vem sendo feito com nosso destacado e eficiente ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que corajosamente, desde que assumiu sua pasta, vem lutando para desmontar estruturas aparelhadas, ineficientes e corrompidas, que criaram um ambiente favorável à dissipação de recursos financeiros, sem que se produzam os efeitos pretendidos.
Por outro lado, esse aparato ostenta eficiente capacidade para construir mitos representativos de seus propósitos. Assim o fizeram com Chico Mendes. A engenharia que orientou a construção de um mito, a aura de herói e mártir, é denunciada pela jornalista canadense Elaine Dewar, no livro Uma demão de verde, publicado em janeiro de 2007, pela editora Capax Dei. A imprensa nacional, logicamente, não deu destaque à verdadeira biópsia que a autora, detalhadamente, descreve a respeito dos esquemas internacionais de elaboração de narrativas que sustentam arquétipos por trás dos quais encastelam-se inexpugnavelmente. Nossas vulnerabilidades decorrem da quase impossibilidade de fazer valer nossos relatos e também de negligências acumuladas ao longo dos tempos.
A primeira iniciativa de exploração econômica planejada deu-se no tempo do marquês de Pombal, a partir de 1750, ano de assinatura do Tratado de Madri, que revogou o Tratado de Tordesilhas e deu a Amazônia ao Brasil. Estabeleceu como critério para delimitação entre o que pertenceria a Portugal e Espanha, nas colônias sul-americanas, o princípio do "uti possidetis". Esse instituto pragmaticamente legalizava a posse dos territórios até aquele momento ocupados pelas partes. Pombal, então, nomeou seu meio-irmão, Mendonça Furtado, como governador-geral do Grão-Pará e Maranhão. Estabeleceu medidas com o intuito de tornar irreversível o domínio de algumas áreas pertencentes a Portugal. Fundou cidades, construiu os fortes de Príncipe da Beira, de Macapá e de Tabatinga e estabeleceu empreendimentos de criação de gado em Tefé e no Lavrado de Roraima.
Depois de Pombal, somente nos governos militares a Amazônia veria planos estruturados com vista à integração e ao desenvolvimento. Abandonada até hoje, a região carece de uma política de um órgão com capacidade de coordenar medidas plurissetoriais, com amplitude e profundidade, que tenham o poder de modificar a atual conjuntura.
Qualquer abordagem sobre a Amazônia deve equilibrar visões endógenas e exógenas e compatibilizar o desenvolvimento com a preservação. Sobretudo, necessita ter um caráter multidisciplinar que contemple fundamentos sociais, ambientais, econômicos, pesquisa científica harmonizada com o conhecimento tradicional das populações locais e, por fim, a segurança e a defesa. Importante também é o respeito ao "tempo amazônico", pois as demandas e os anseios das populações locais obedecem a uma lógica distinta daquela dos não amazônidas.
Com otimismo, vemos o governo Bolsonaro caminhar em sentido contrário, ao criar o Fundo Amazônia, entregando a responsabilidade para um profundo conhecedor daquela região, o general Mourão, vice-presidente.
A incipiente ação governamental sobre a Amazônia dá margem a manifestações com o teor semelhante à do presidente Macron. Há muito tempo, líderes estrangeiros orquestram pronunciamentos com esse teor. Em 1989, Al Gore, campeão do ambientalismo, disse: "Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós." No mesmo ano, veio da própria França a recomendação do presidente François Mitterand, de que "o Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia". Longe de esgotar o repertório de admoestações contra nós, o primeiro-ministro soviético Mikhail Gorbachev, sabe-se lá com que intuito, também abriu suas baterias, orquestrando que "o Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes".
É possível colecionar dezenas de afirmações de líderes internacionais que ignoram a luta que travamos para proteger nossos biomas. Fazem parecer que, quando se trata de preservação ambiental, o quesito "coerência" deixa de ser requisito para conferir autoridade moral. Os países europeus praticaram um colonialismo predatório, vitimando, igualmente, as populações e os ambientes onde elas residem. A Inglaterra concretizou seu projeto de poder, no tempo de Henrique VIII, extinguindo as florestas da ilha para a construção da armada com que conquistaria o Império "onde o sol não se punha". A França, já no século XX, fazia experimentos nucleares na Polinésia, e a Noruega, por sua vez, até nossos dias, caça baleias e explora petróleo no interior do círculo polar ártico.
Sendo assim, nós brasileiros deveríamos focar em projetos para exploração da Amazônia condicionados exclusivamente por nossos parâmetros. Adicionalmente, temos negligenciado as oportunidades que a Pan-Amazônia nos oferece para liderar a ocupação, o desenvolvimento e a preservação, como fundamentos para um processo de integração regional. Nos países condôminos, as respectivas Amazônias guardam uma forte homogeneidade no que se refere às características, problemas e potencialidades.
Acho que pode haver até um razoável consenso de que, primeiro, a Amazônia é ainda muito pouco conhecida do ponto de vista científico; segundo, que existem interesses comerciais em explorá-la - uma cobiça, nesse sentido comercial. Mas outra coisa, que se colocou agora e que apareceu muito no noticiário, é a preocupação em relação a uma possível perda de soberania sobre a Amazônia. O senhor acredita que existe, mesmo, o risco de o Brasil perder soberania sobre parte da Amazônia?
Não se espera uma ação militar direta sobre a Amazônia, até porque as condições geográficas inviabilizam um intento dessa natureza. A esse efeito dissuasório natural, tratamos ainda de agregar a "estratégia da resistência", capacitando as Forças Armadas a tirar proveito do que a geografia proporciona para o enfrentamento de eventuais oponentes.
O mais preocupante, contudo, vem do que o general Etchegoyen chamou de déficits de soberania. Em outras palavras, na defesa das fronteiras virtuais não temos garantido o mesmo êxito que logramos em relação às fronteiras físicas. Um evento recente ilustrou a perda da liberdade para agirmos em consonância com nossos interesses. O presidente Temer, em agosto de 2017, decidiu pela extinção da Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), que na prática já não fazia sentido, pois estava tomada por garimpos clandestinos, posseiros etc.
O propósito se restringia a apenas regulamentá-la, sem estabelecer a permissão para exploração. Imediatamente, desencadeou-se uma campanha internacional, logicamente que com origem no ambientalismo interno, o que fez com que meses depois a iniciativa fosse revogada.
Quer dizer, seria correto dizer que o senhor está preocupado menos com a perda de soberania territorial, de ocupação, do que com uma limitação da margem de ação do governo do país sobre a Amazônia. Seria isso?
Em seguida à assinatura do acordo entre Mercosul e União Europeia, fomos atropelados por uma avalanche de acusações, oportunisticamente, tirando proveito da sazonal temporada de queimadas. Nossa imprensa, guardadas algumas exceções, tratou de dar cores dramáticas ao que denunciavam, amplificando as matérias advindas do exterior.
Ficamos imobilizados a despeito dos esforços do governo, até que outras matérias viessem a ocupar espaço na mídia.
Mas, tirando essa revolta ou irritação com essas falas, como a do presidente Macron, o senhor não acha que a questão ambiental é séria, que ela existe? Aquecimento global, sustentabilidade...
Muito séria. Há inúmeras razões pelas quais devemos impedir que o desmatamento avance. Em primeiro lugar, por uma questão de responsabilidade perante as gerações futuras. Em segundo, para impedir a legitimidade dos argumentos daqueles que nos acusam de negligência ou descaso. Por fim, porque a biodiversidade tem um valor elevadíssimo, ainda não quantificado pelo que a ciência alcança até então.
Nesse campo, eventos históricos nos servem de exemplo, desde o contrabando de sementes da seringueira para a Malásia, com efeitos desastrosos para a economia da Amazônia, encerrando ciclo da borracha, até, mais recentemente, o registro da marca cupuaçu pelo Japão, que nossa diplomacia teve sucesso em reverter.
General Villas Bôas: conversa com o Comandante / Celso Castro (ORG) - RJ: FGV EDITORA, 2021, p. 127/132
Notícias relacionadas
Foto: Anderson Cardoso
@ANDERSON.FOTOGRAFIA