O presidente do STF em Altamira

O presidente do STF em Altamira
24/06/2024 por Editorial

A visita de Luís Roberto Barroso levanta questões sobre o papel do judiciário na Amazônia

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luís Roberto Barroso, esteve em Altamira (PA) na última segunda-feira (17/06) para tomar parte de evento do Programa Judicial de Acompanhamento do Desmatamento da Amazônia (Projada). Barroso realizou um sobrevoo em áreas de floresta, falou no Fórum de Altamira e participou de reuniões fechadas. O ministro partiu de Altamira no final da tarde do mesmo dia.

O Projada foi instituído pela Portaria nº 228/2023 do CNJ “com o objetivo de, por meio do sistema de justiça, monitorar, prioritária e continuamente, o desmatamento e a degradação da flora nativa de qualquer natureza”, no sentido de propor medidas para combater o desmatamento, o que inclui “estimular a integração entre membros do Poder Judiciário e Ministério Público”, mencionando também a participação “de organizações da sociedade civil, do País e do exterior”.

Quando Barroso propôs falar para a sociedade no Fórum da cidade, a audiência foi composta majoritariamente por membros do judiciário e contou com cerca de oito pessoas da sociedade civil local, que não tiveram direito à palavra. Entre os presentes estavam Herman Benjamin, presidente do Superior Tribunal de Justiça, a desembargadora Maria de Nazaré dos Santos, presidente do Tribunal de Justiça do Pará, o desembargador João Batista Moreira, presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Rodrigo Mendonça, presidente do Ibama, Mauro Pires, presidente do ICMBIO, Luanna Karissa Araújo Lopes Sodré, juiza e presidente do Fórum de Altamira. 

O Estado reconhecer a posse da terra como uma necessidade, a questão fundiária como objeto de uma política pública, seria um caminho capaz aumentar a prosperidade e facilitar a fiscalização, definindo as responsabilidades ambientais....

A ocasião foi uma tribuna para o discurso do presidente do STF, que repetiu os temas de sempre. “A presença do Judiciário se dá hoje aqui porque essa região é uma das mais importantes, no coração da Amazônia”, disse o ministro dando a entender que a sua presença corporifica o Poder Judiciário, acrescentando mais gravidade ao dizer que “o futuro da humanidade está em jogo, não o imediato, o nosso e dos nossos filhos”.  Quando participou da reunião de representantes das supremas cortes do G20 em maio deste ano, Barroso também falou das crianças e que o judiciário tem o papel de zelar pelas gerações futuras. Seu discurso se aproxima cada vez mais daqueles que querem transformar a maior parte da Amazônia em um santuário livre da atividade humana. Esse tipo de “solução” enfrenta resistência na população local, que mais do que sobreviver, quer prosperar.

A grande posição do judiciário neste momento, representada na resolução do CNJ e no ministro Luís Roberto Barroso, é um programa que canaliza os recursos para combater o desmatamento acelerando processos que envolvam temas ambientais, aumentando os esforços para punição e adotando um sistema próprio de fiscalização por imagens de satélite. 

Conversando com alguns expoentes da sociedade civil de Altamira e do Pará, porém, percebe-se que a atuação do CNJ é recebida com frieza, como uma intervenção vertical, “de cima para baixo”. “Não é possível encontrar uma solução sem diálogo envolvendo várias partes da sociedade”, disse um dos entrevistados. Ao se concentrar no desmatamento, o CNJ estaria abordando uma consequência mais do que a causa do problema.

A ocupação humana, em especial a partir da construção da Transamazônica, se espalhou pelo território de Altamira, que é o maior município do Brasil, sem o Estado acompanhar esse crescimento com os serviços básicos, dentre eles a justiça (que é um bem público fundamental). A consequência mais sensível é um déficit no registro das propriedades rurais. 

A divisão da terra é o início da lei. A identificação de imóveis rurais não é só uma medida que beneficiaria a produção rural, mas a própria governança e preservação daquelas regiões. Em Altamira e no estado do Pará, como na Amazônia em geral, existe uma dificuldade para a realização do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que é o instrumento fundamental para o Estado manter uma relação legal com a terra e com os proprietários — é o “RG” daquela terra. Nos casos em que existe uma tentativa de registro do CAR, os órgãos ambientais se mostram inaptos para fiscalizar e o processo fica paralisado.

Sem o CAR, o produtor está na ilegalidade e não tem acesso à linhas de crédito, o que aumenta o incentivo às formas de extração mais predatórias. O Estado reconhecer a posse da terra como uma necessidade, a questão fundiária como objeto de uma política pública, seria um caminho capaz aumentar a prosperidade e facilitar a fiscalização, definindo as responsabilidades ambientais (o atual Código Florestal já prevê uma área de preservação em cada propriedade rural). 

A política atual, entretanto, é uma política punitivista, isto é, voltada para a repressão. Com essa política vem também uma narrativa para facilitar a identificação de produtores e trabalhadores com a figura de criminosos malignos, destruidores da floresta e, no pior dos casos, inimigos da humanidade, verdadeiros cavaleiros do apocalipse climático. E todo discurso jurídico que recorre ou flerta com a ideia de “inimigos da humanidade” está se afastando do ideal da mediação pacífica dos conflitos em prol de uma guerra absoluta na qual os inimigos são desumanizados.

Na prática, a vida do agricultor é cada vez mais marginalizada na região amazônica. Primeiro a marginalização estimula práticas agrícolas de curto prazo, para o máximo de ganho nas condições adversas, o que impede o uso intensivo de tecnologia. Depois a marginalização empurra os jovens para longe das atividades agrícolas, reduzindo as oportunidades econômicas e aumentando o atrativo da vida criminosa, o que fortalece as facções do narcotráfico. Em um ciclo vicioso, o narcotráfico acumula capital e poder o suficiente para explorar a floresta como bem entender, ao passo que o Estado ficou para trás se omitindo da responsabilidade de regularização. 

Essa é a lógica econômica: as pessoas já vivem naquela região e buscam maneiras de sobreviver e prosperar. Não adianta voltar o relógio da história e buscar reverter a presença humana. Não adianta esperar que o jovem cheio de aspirações se satisfaça com atividades econômicas semi-assistencialistas patrocinadas por ONGs ou com bolsa floresta. Na sociedade em que vivemos, as pessoas querem cidadania econômica. Com o grau de circulação de imagens e informações nos dias de hoje, os jovens vão aspirar a uma vida próspera e buscar os caminhos que podem oferecer essa vida; aqui estão incluídos os jovens indígenas, que vão questionar a sua própria pobreza frente à prosperidade dos funcionários de classe média que compõem o quadro de instituições públicas como a FUNAI (ou do judiciário, que diz que está disposto a “se aproximar” de todos os amazônidas). 

Trabalhadores de todo o Brasil se dirigiram para a Amazônia com a promessa de trabalho e um pequeno pedaço de terra, sonhando com um futuro melhor. No momento, o Estado repudia o compromisso histórico que assumiu com esses trabalhadores e dificulta o reconhecimento da posse de terras em áreas que são formalmente públicas.  O INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que é a instituição responsável por tal trabalho, encontra-se enfraquecido. A natureza da sua atuação (colonização e reforma agrária) entra em choque com a crescente atuação ideológica no interior do judiciário, que se aproxima mais e mais daqueles que apostam no congelamento da produção como política ambiental.  O Protocolo de Julgamento de Ações Ambientais do CNJ, por exemplo, é marcado pela contribuição de obras de ONGs como a IMAZON.

O judiciário concentra-se na repressão ao desmatamento enquanto reduz a atenção para a regularização fundiária. Ao mesmo tempo, agentes do judiciário contribuem com reivindicações de demarcação de terra indígena em áreas da união que se sobrepõem a terras que já foram ocupadas por posseiros. Quando o CNJ de fato voltou seu olhar para a questão fundiária, os processos de reintegração de posse a partir de 2020 tornaram-se mais burocráticos, com um protocolo de reintegração de posse que enfraqueceu as varas judiciárias em prol de comissões especiais, atrasando em anos as visitas de inspeção enquanto, do ponto de vista ambiental, muitas vezes os ocupantes exploram agressivamente os recursos da propriedade. 

Um papel especial para a justiça ou uma justiça especial?

Por mais que a portaria do CNJ não estabeleça ipsis litteris uma justiça especial ou de exceção, devemos nos preocupar com a possibilidade da medida apontar nessa direção. O judiciário, a partir do CNJ, está assumindo uma diretiva política para orientar a concentração de recursos e esforços em uma pauta que é envolvida por polêmicas ideológicas que abarcam a política e a sociedade. 

Desta forma, a atuação “proativa” do poder judiciário na pauta ambiental pode desembarcar em uma invasão nas competências do poder executivo através do excesso de gestão, com o judiciário partindo de uma posição ideológica que não passou pelo filtro da política, o que pode ser também uma possível invasão nas competências do poder legislativo. A política ambiental passa a ser produzida no interior do poder judiciário, correspondendo mais à pressão internacional e ao pensamento produzido em institutos e ONGs do exterior do que ao processo político brasileiro. 

O próprio presidente STF considera que a “inércia do poder político” frente às questões climáticas colocou o judiciário no primeiro plano. Na COP 27 Barroso já havia usado o argumento da inércia, usando como exemplo “os direitos das mulheres e os direitos da comunidade LGBTI” como áreas em que o judiciário saiu na frente da política. Enquanto o braço executivo do Estado brasileiro encontra impedimentos em sua atuação na região amazônica, em especial para a realização de grandes projetos econômicos, o braço judiciário inicia uma grande campanha ideológica e punitivista na região, que não está voltada contra as grandes facções do narcotráfico que crescem na Amazônia, mas contra trabalhadores e produtores rurais.

Do ponto de vista do próprio poder judiciário, a criação de comissões especiais como as que citamos acima, voltadas para os processos de reintegração de posse, também pode ser um caminho que vai mudar a estrutura das jurisdições e criar uma jurisdição especial de facto.

As asas do judiciário

O voo sobre áreas de floresta foi o destaque espetacular da viagem de Barroso em Altamira, que declarou que “o desmatamento é evidente”. O próprio ministro usou a ocasião como um artifício retórico para enfatizar a urgência da sua pauta, como se o eco do motor do avião aumentasse a eloquência de seu discurso. Conforme consta na programação temática da visita, o propósito de tal passeio foi contrastar a preservação da Terra Indígena Arara com o desmatamento na área da assim chamada Terra Indígena Ituna/Itatá.

A assim chamada Terra Indígena Ituna/Itatá não é uma terra indígena demarcada, mas uma região de 142 mil hectares  que teve seu acesso interditado por uma portaria da FUNAI em janeiro de 2011, com o argumento de que eram necessárias pesquisas para confirmar a possível presença de povos indígenas isolados na região. A Terra Ìndigena Arara, homologada em 1991, é uma área de 274 mil hectares, com uma população de 256 habitantes. A ideia de realizar um contraste da preservação em uma terra índigena homologada sugere uma lógica de aumentar a pressão política pela homologação de uma Terra Índigena em Ituna/Itatá.

Um setor do ambientalismo acredita que no Brasil o melhor caminho para “zerar o desmatamento” é limitando a ocupação humana e a produção na floresta, usando a demarcação de terras indígenas como um instrumento para atingir tal objetivo. Essa questão ocupa posição central nas ansiedades que a presença do presidente do STF provoca na região.  O judiciário abre suas asas, esplendoroso, mas voa tão distante da comunidade local quando aposta em medidas de força para alcançar o objetivo de desmatamento zero.

Editorial

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