Os Estados Unidos vivem uma explosão de cannabis, conhecida popularmente no Brasil como maconha. Vários estados criaram legislações que permitem a comercialização da cannabis para uso medicinal e até recreativo (21 estados já liberaram o uso recreativo). A liberação da venda e do consumo, entretanto, não significa que a indústria esteja livre das sombras da criminalidade. Na realidade, a abertura de um mercado altamente lucrativo pode ter sido explorada por redes criminosas.
Segundo o The Week em outubro de 2022, as estruturas ilegais se espalharam enquanto os cultivos legais são controladas por “players politicamente conectados” — um pequeno número de empresas que têm a maior parte das licenças. Também em 2022, no Los Angeles Times a jornalista Paige St. John publicou uma longa matéria sobre os criminosos que se escondem debaixo da maconha legalizada na Califórnia. A jornalista escreveu sobre uma grande oportunidade que se abriu para redes criminosas transnacionais, o que se traduziu na multiplicação de várias fazendas e estufas irregulares.
Moradores vizinhos dessas operações descrevem o terror de viver ao lado de verdadeiros acampamentos armados. A terra é arrendada por criminosos que rapidamente implementam infraestruturas de até 100 estufas, verdadeiros complexos grandes demais para o trabalho dos departamentos policiais locais. O plantio deveria ser permitido pelas comunidades locais através dos municípios, mas os criminosos não se importam e não pagam os impostos proporcionais ao impacto social.
As plantações e estufas têm alto consumo de água e uso descontrolado de pesticidas. As condições de trabalho são terríveis, trabalhadores são explorados e enganados por seus patrões. No plano da segurança pública, a violência continua: roubos, assaltos, tiroteios, sequestros e assassinatos são práticas comuns das gangues envolvidas no novo submundo ilegal da maconha legalizada.
Lendo a reportagem do LA Times, percebemos que a descriminalização nos Estados Unidos não trouxe tantos incentivos para a regularização, mas deu segurança para grupos criminosos dispostos a ampliar suas operações irregulares.
Uma reportagem da CBS apurou com policiais do Maine, em abril de 2024, sobre a multiplicação de cultivos ilegais de maconha em zonas urbanas, dentro de estufas fechadas que consomem grande quantidade de eletricidade. Grupos criminosos chineses ligados ao tráfico do opioide fentanil estariam por trás das operações que são interligadas com outros negócios ilegais e esquemas de lavagem de dinheiro..
Em março, os repórteres Sebastian Rotella e Kristen Berg iniciaram sua série investigativa no ProPublica para revelar o poder de máfias chineses no mercado de maconha dos Estados Unidos. A motivação inicial do artigo? Um assassinato quadruplo que ocorreu em Oklahoma, em 2022. Um homem forte, meio careca e de nacionalidade chinesa entrou em uma garagem de uma produção ilegal de maconha brandindo uma pistola 9mm, executando quatro pessoas que estavam ali, também chineses.
O mercado de crédito para a cannabis nos Estados Unidos é um tanto restrito, mas os criminosos seguem em frente criando um poderoso sistema bancário paralelo e fazendo valer seus investimentos com a força do ferro e do chumbo.
O assassino em Oklahoma estava cobrando uma dívida de um investimento de U$ 300 mil no negócio da maconha.
Com esse pacote, além da violência, vem também as fraudes, os subornos, desvio de água e de eletricidade. Os grupos chineses envolvidos na atividade criminosa seriam tríades baseadas em Nova Iorque, muitas delas originárias na cidade de Fujian, no sul da China. Essas máfias foram atraídas para o negócio da maconha nos Estados Unidos precisamente quando ocorreu a legalização. As matérias jornalísticas falam de um mercado ilegal maior do que o legalizado, que só em Oklahoma movimentou cifras de até U$ 44 bilhões.
Os repórteres da ProPublica chegam a dizer que, neste momento, funcionários da segurança nacional dos EUA acreditam que as tríades atingiram um poder global sem precedentes graças à legalização da maconha no país norte-americano. Além disso, os jornalistas também afirmam que os criminosos estariam prestando serviços financeiros para o governo chinês — em uma linha perigosa, a reportagem afirma que membros de associações culturais chinesas em Oklahoma estariam igualmente ligados ao Partido Comunista da China e às tríades de Fujian.
É importante ressaltar que a maioria das fontes dos jornalistas para as alegações sobre riscos de segurança nacional e vínculos com o governo chinês vem de oficiais da união federal dos EUA — sendo assim, é razoável manter a reserva de que existem interesses políticos se concentrando na questão chinesa, o que inclui representantes dos dois grandes partidos se colocando à disposição para encontrar formas de ferir o patrimônio de cidadãos chineses no interior dos Estados Unidos.
Não podemos ignorar, entretanto, a reportagem da correlação de forças no mundo criminoso: ao invés da regularização, “o baixo risco e o dinheiro rápido” dispararam um frenesi, lemos no ProPublica. As gangues chinesas entraram de forma decisiva, se sobressaindo em relação às gangues cubanas, mexicanas e nacionais que se envolveram na nova corrida criminosa. Os grupos chineses, em particular, estariam operando uma sofisticada rede de migração ilegal para explorar o trabalho de pessoas que são levadas clandestinamente para o país, onde trabalham muitas vezes em condições desumanas. Milhares de trabalhadores foram levados para os Estados Unidos para trabalhar nas plantações e estufas dominadas por empresários (mafiosos?) chineses. A última matéria da série da ProPublica é sobre um desses trabalhadores que morreu enquanto trabalhava.
Não que esse tipo de exploração e até mortes nos locais de trabalho sejam exclusividade da rede da máfia chinesa: O Los Angeles Times documentou dezenas de mortes de trabalhadores intoxicados por monóxido de carbono; as condições precárias se estende por várias plantações de maconha, independente da presença de chineses.
É provável que grande parte do escândalo se dê por razões políticas e culturais: os acusados da vez são chineses com supostos vínculos ao governo da China, isto é, os fatos servem à uma narrativa da grande guerra que os Estados Unidos vivem nesse momento. Podemos abstrair essas polêmicas políticas por um momento, mas não podemos fechar os olhos para as consequências da legalização da cannabis que destroem as fantasias de todos aqueles que acham que a descriminalização resolverá todos os problemas de segurança pública relativos ao tráfico de drogas.
A legalização em estados como o Maine e Oklahoma não acabou com a associação entre o mercado de maconha e o crime organizado, mas criou um novo ambiente de oportunidades para as redes criminosas. A legalização não é a solução mágica para o tráfico de substâncias que exercem uma atração tão forte sobre uma parcela significativa dos seres humanos.
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Foto: Anderson Cardoso
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