Parintins: organização, nativismo e identidade

Parintins: organização, nativismo e identidade
04/06/2024 por Asa Branca

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, em seu artigo "O Boi-Bumbá de Parintins, Amazonas: breve história e etnografia da festa", oferece uma análise acadêmica sobre uma das manifestações culturais mais emblemáticas do Brasil. O objetivo deste texto é não apenas resenhar e comentar o artigo, reconhecendo seu valor intrínseco, mas utilizar as informações nele contidas para explorar os temas centrais que emergem da festa do Boi-Bumbá e sua relação com o processo de formação de identidades.

O Boi-Bumbá de Parintins, segundo Cavalcanti, desempenha um papel crucial na produção de uma identidade cabocla no Amazonas. Embora a brincadeira do boi ocorra em várias partes do país e em diferentes datas ao longo do ano, em Parintins ganhou uma dimensão especial. A autora aponta que essa celebração evoluiu incorporando elementos de outras festividades brasileiras, especialmente do carnaval, ao mesmo tempo que desenvolvia uma identidade muito própria.

Um dos primeiros registros da festa do Boi em Manaus, conforme levantado por Cavalcanti, é de um médico-viajante no século XIX, que a denominou como um "cortejo pagão incluído em uma festa católica". A festa evoluiu e, com ela, as formas de organização popular associadas a sua realização. Os bois se associavam com bairros e grupos específicos, e os cortejos que o acompanhavam ostentavam um orgulho local que se traduzia em confrontos físicos, enfrentamentos diretos entre os participantes. "O Boi é uma organização local, rural ou urbana, de um bairro e seus arredores, e a existência de um Boi num local chama a de outros, pois rivalizar é parte importante da brincadeira", diz Cavalcanti. Nesse contexto se desenvolveu a rivalidade entre o Boi Caprichoso e o Boi Garantido. O próprio nome Garantido veio da ideia de que aquele era um boi garantido na briga, que não quebrava.

Essa rivalidade desenvolveu uma espécie de competição estratégica entre os grupos opostos: no intuito de superar o outro, os grupos buscavam inovações técnicas e artísticas (como o boi que mexe a cabeça e as orelhas, por exemplo). Mais do que isso, a oposição ao outro fortalece o espírito comunitário e a identidade dos participantes.

A participação dos ricos nas festas desde sua origem na cidade, quando notáveis patrocinavam seus bois favoritos, também é um aspecto importante abordado por Cavalcanti, lembrando o conceito de evergetismo, onde indivíduos abastados contribuem financeiramente para a realização de eventos públicos, que podem ser desfrutados gratuitamente por qualquer um. Dessa forma, classes distintas se vinham incluídas em um mesmo ritual de formação de identidade, ainda que não ocupassem a mesma posição: o pescador que acompanhava o festejo não fazia a mesma coisa que o patrocinador rico que recebia o boi na frente de sua casa, mas ambos se reuniam em uma espécie de pacto social onde cada um poderia cumprir sua função, em especial o rico ao assumir o fardo financeiro de uma responsabilidade voltada ao coletivo.

O formato contemporâneo do festival, que institucionaliza o confronto do Garantido com o Caprichoso e evoluiu para formas de financiamento mais complexas que o patrocínio de indivíduos notáveis, surgiu de uma iniciativa da Juventude Alegre Católica (JAC), ou seja, de um esforço da sociedade civil organizada e dedicada à cultura. Conforme citado por um dos precursores, eles faziam aquele trabalho “por amor à pátria”.

Diz a autora: "O Boi Garantido teria sido criado em 1913, por Lindolfo Monteverde, filho de açorianos. O Boi Caprichoso logo o seguiu, há quem diga no mesmo ano, há quem diga um ano depois, criado pelos irmãos Roque e Antônio Cid (naturais do Crato, no Ceará) e por Furtado Belém, parintinense ilustre.”

Chama atenção que essa tradição popular concentrada nas agremiações não é imemorial, mas tem uma história que pode ser traçada e que é testemunha do papel central dos participantes na produção da festa. Isto é, o Garantido e o Caprichoso se mantiveram pois uma comunidade de pessoas dedicadas garantiu sua continuidade. Foi essa organização que permitiu que a competição evoluísse no sentido de regras e regulamentos a partir de acordos básicos entre participantes. O triunfo se torna maior com o reconhecimento do outro.

Cavalcanti nos convida a refletir sobre o equilíbrio delicado entre tradição e progresso, reflexão que — mesmo em seus momentos polêmicos — revela a profundidade e a riqueza da cultura brasileira.

Também há algo de muito brasileiro no fato de que essas instituições que sustentam o curral remetem a pessoas com origens fora da Amazônia — no Ceará, no Açores — mas que eram amazônidas por sua identificação, sua vida e dedicação àquele território. Se misturaram com a cultura que já existia naquele território.

Essa busca por uma cultura associada com a terra é uma tema central no artigo de Cavalcanti, que interpreta o Boi-Bumbá de Parintins como um novo nativismo.

A autora faz referência ao trabalho de Câmara Cascudo, que situa a simbologia do boi como uma potência que se estende por culturas diversas — grega, védica, iraniana, ibérica, dentre outras — mas que no Brasil se tornou uma manifestação singular própria do “gênio do mestiço”.

Essa ideia se reproduziria na própria festa do boi, que celebra o indígena e as raízes indígenas na sua construção simbólica. A intensificação dos motivos indígenas nas festas do boi seria o grande índice da emergência desse novo nativismo; a festa do boi em Parintins "emerge como um moderno movimento nativista que elegeu imagens indígenas como metáforas para a afirmação de uma identidade regional cabocla".

Se recordamos da obra do Antonio Candido¹, podemos entender o nativismo como um tema constante na emergência de uma identidade nacional brasileira, conforme argumentou o teórico e crítico literário. O nativismo era a ideologia da celebração dos "filhos da terra", cuja expressão literária é marcada pelo predomínio do sentimento da natureza.² Sendo guiado pela ideia de que o nascimento em uma terra cria um vínculo especial para a identidade, o nativismo não poderia deixar de ser atraído pela visão de que o indígena tem um status especial decorrente da sua relação com a terra. Por isso o nativismo se desdobrou em outro fenômeno, aquele do indianismo.

Segundo Candido, o indianismo "teve momento áureo do meado do decênio de 1840 ao decênio de 1860", originado na "busca do específico brasileiro", com o indígena aparecendo amplamente nas festas do Brasil joanino, "representando o país com uma dignidade equiparável à das figuras mitológicas". ³ "O processo se intensifica a partir da Independência, pela adoção de nomes e atribuição de títulos indígenas", o aborígene como representante especial do brio nacional. Membros da elite, de Bonifácio até o próprio d. Pedro, adotaram codinomes indígenas e celebraram indígenas como símbolos de força. ⁴

De fato, o Festival de Parintins traz consigo a simbologia do passado indígena e do vinculo com a terra, o que parece fortalecer o argumento de Cavalcanti de que existe uma temática nativista. A figura do indígena na festa do boi se torna elemento central do preenchimento da narrativa do evento e do caráter particular, especial, da identidade cabocla. "Um poderoso processo ritual, através do qual a pequena cidade, e com ela toda a região Norte, como que aspira comunicar-se com o país e com o mundo", observa a autora.

Essa característica do festival como uma postulação de identidade também suscita questionamentos sobre a autenticidade e legitimidade por detrás da postulação.

Cavalcanti utiliza o conceito de "fato social total", de Marcel Mauss, para descrever a festa do Boi-Bumbá, ressaltando as contradições inerentes à sua expansão.

Se de um lado, de fato, a culminação máxima de uma manifestação cultural em uma sociedade de massas capitalista é sua conversão em grande espetáculo e negócio, por outro é possível considerar os questionamentos sobre autenticidade como persistentes nessas condições. O triunfo da festa como grande evento — estatal, política pública financiada pelo governo, e capitalista — traz consigo uma ambiguidade característica dos processos de formação de identidade de massa. Ao mesmo tempo que o evento pode ser visto como uma lógica de afirmação da identidade regional, a influência de forças que são externas ao processo estritamente cultural criam a insegurança de que aquele processo pode ser subordinado por formas de mercantilização, instrumentalização e apagamento. Não podemos oferecer uma conclusão definitiva para essa contradição, mas é preciso constatar sua centralidade nos processos de formação de identidade contemporâneos.

Recomenda-se a leitura do artigo para conhecer os detalhes da etnografia realizada pela autora. A festa, enquanto celebração e espetáculo, encapsula as contradições e os desafios da formação de identidade em um mundo contemporâneo globalizado. Através de sua análise, Cavalcanti nos convida a refletir sobre o equilíbrio delicado entre tradição e progresso, reflexão que — mesmo em seus momentos polêmicos — revela a profundidade e a riqueza da cultura brasileira.

Artigo: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. O Boi-Bumbá de Parintins, Amazonas: breve história e etnografia da festa. História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. VI (suplemento), pp. 1019-1046, setembro 2000.

¹ CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Todavia, 2023.
² CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Todavia, 2023, p. 336.
³ IBID., p. 340.
⁴ IBID., pp. 341-345.



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