Uma sala cheia de pessoas nuas; roupas de marca estão jogadas no chão. Alucinações tomam sua mente: um boi dança em cima da mesa de jantar, mas sem quebrar a prataria. Todos relaxados graças ao auxílio de certas substâncias. Então aparece um homem de barba, tatuado e musculoso, mas sua pele tem chagas. Seria Jesus Cristo? Ele diz que é e que seu toque tem os poderes da cura, da libertação.
Centros urbanos, jovens musculosos com roupas na moda e drogas sintéticas: não parece ser essa imagem que a maioria das pessoas têm quando se fala de “seita amazônica”. Talvez quando falamos de “seita amazônica” as pessoas pensem em coisas mais próximas de um estereótipo: caboclos no meio do mato tomando misturas de ervas alucinógenas, virando animais em suas viagens astrais e, se tudo der errado, se afogando nas profundidades do rio.
Nesse caso, porém, temos que deixar a imaginação nos levar para uma seita manauara, urbana, internética e pós moderna, regada por substâncias produzidas em laboratório.
Um devaneio da imaginação, sim, mas segundo os jornais — que estão se baseando em relatórios policiais — uma história parecida com essa ronda a morte de Djidja Cardoso. A empresária foi sinhazinha do Boi Garantido na Festa de Parintins entre 2015 e 2020, e agora usava sua beleza para promover uma rede de salões estéticos ao lado da mãe, Cleusimar Cardoso, e do irmão, Ademar Cardoso.
O irmão é empresário, fisiculturista e, segundo o que vem sendo divulgado, líder de seita.
Ademar Cardoso era um Jesus Cristo profissional. Não falo de troça: segundo o que vem sendo informado, o homem dizia que era uma encarnação de Jesus Cristo, sua mãe era uma Maria e sua irmã uma Madalena.
As fotos de Ademar expõem algumas tatuagens. Uma águia bicéfala no peito, que lembra muito aquela da bandeira da Albânia; uma cobra que se projeta no ombro esquerdo, sedutora como a serpente do Gênesis.
A seita de Ademar seria, supostamente, um coquetel de nova era que regurgitou misticismo com cristianismo, budismo e desenvolvimento individual, batizado com uma dose cavalar da droga quetamina.
Cavalar. Quetamina, Cetamina ou Ketamina — também conhecida como Keta — é uma droga que serve para humanos, mas não é usada assim no Brasil. No Brasil quem usa — ou aplica — é o veterinário, a quetamina se arruma em loja agropecuária, pois na dose certa ela é forte o suficiente para manter um cavalo em estado sedativo. A droga pode servir para cães, gatos e coelhos, além de ser parte importante de um coquetel calmante usado em roedores, como aqueles que vivem sob o nosso controle dentro de laboratórios.
O que estão dizendo agora é que, aparentemente, Ademar usava a droga para tratar os membros de sua seita como algo não muito mais digno do que ratos dispostos para sua manipulação e deleite.
Peço desculpas pelo abuso dos advérbios de modo: especificamente, supostamente, alegadamente… Temos que ter cuidado com advérbios tão feios, mas carece de se ter mais cuidado ainda com o que afirmamos sobre pessoas que sofrem acusações, afinal não tenho nada contra nenhum dos envolvidos. O problema é que a história é muito envolvente.
O tráfico de ideias simplistas porém estimulantes era acompanhado pelo tráfico de drogas ilícitas e relaxantes. O indivíduo é fragilizado pelo assalto moral e pelo entorpecimento físico.
Há uma certa ironia, se me permite o comentário social: uma sociedade dominada pelo individualismo evita certas discussões morais e políticas, abrindo seus flancos para oportunistas que dizem buscar "indivíduos escolhidos e abençoados" para então subjugar essas individualidades, com controle, abuso e drogas.
Parece certo, de toda forma, que existia droga e era muita. Afinal, o advogado de Ademar e Cleusimar declarou para o Uol que seus clientes faziam uso prolongado da droga, que são doentes, dependentes químicos.
A própria Djidja teria sido encontrada com “indícios” de overdose.
Para reforçar o seu argumento de que ali se usava muita droga, o advogado especificou para o Uol que a mãe Cleusimar se apresentou como Maria (Mãe de Deus) na delegacia, declarando que o filho era Jesus Cristo em pessoa. Alguns áudios da mãe foram parar nos ouvidos da redação do Extra, que publicou duas falas da senhora: em uma delas, com voz “aparentemente entorpecida” (sic), a mulher diz que a Djidja vai voltar, vai ressuscitar em quatro dias, que basta orar, que já viram testemunho em Parintins de uma mulher que ressuscitou ou coisa parecida. Noutro áudio, Cleusimar parece mais razoável e diz que estavam tentando “Limpar a filha”, mas que as coisas saíram do controle.
Muita droga.
A quetamina é um calmante e sedativo que é capaz de gerar alucinações. É possível consumir essa droga cheirando quando ela está em pó, uma farinha que precisa ser preparada em microondas antes de ser consumida. Ela melhora o humor dos usuários e pode causar dependência.
Apesar dessa versão em pó, conforme relatado na mídia a seita de Manaus preferia o cloridrato de quetamina líquido a ser consumido por via venosa. Mais forte, na veia, no sangue.
Por isso, mãe e filho foram presos com ferimentos necrosados associados ao uso excessivo das agulhas. Cada Cristo sabe as chagas que carrega.
Segundo o que foi publicado até então, a seita se chamava “Pai, Mãe, Vida”, mas pesquisando por esse nome me parece provável dizer que ele é mais um conceito, uma tipologia doutrinária da seita, do que uma seita única liderada por Ademar.
Ademar foi fisiculturista. Como fisiculturista competidor, ele provavelmente se utilizou de drogas voltadas para o desempenho no esporte. Cabe lembrar que alguns anabolizantes populares entre fisiculturistas são usados no gado equino e bovino, o que cria uma hipotética progressão irônica dos hábitos de adição retratados nesse caso: primeiro drogas para deixar o cavalo forte, depois as drogas para deixar o cavalo calmo.
Mas o negócio da seita não era só acalmar, era iluminar.
Supostamente, Ademar gostou muito de um livro que leu sobre “a nova consciência crística” e decidiu que aquele era seu chamado. Na sua peregrinação pelo mundo — morou um tempo em Londres — Ademar não precisou ouvir as vozes do céu no meio do deserto, bastou ler um livro que o homem se desarranjou em profeta.
Em verdade e sentimento de justiça vos digo: ao ler os relatos ainda tenho dúvidas se o líder da seita dizia ser literalmente uma encarnação individual de Cristo ou se apenas a polícia repassou um discurso new age genérico (de consciência crística) que diz que ao fim e ao cabo nós todos somos Jesus (Jesuses?) — naturalmente alguns são mais do que outros, o líder da seita está mais Jesus Cristo do que os seguidores da seita que, menos conscientes da sua Cristicidade, precisam do auxílio do guru na sua autodescoberta.
Ora, essa gente ao invés de esperar Cristo no fim do mundo, decidiu que era melhor tentar virar Cristo, mas no fim eles aceleraram foi o fim do próprio mundo, em um apocalipse cheio de peste e violência.
O afã de guiar as pessoas para a iluminação terminou em desastre: surgiram acusações de abuso sexual que teriam ocorrido durante os rituais regados à quetamina. E tudo isso começou com uma investigação voltada para a rede de tráfico centrada no grupo familiar. As acusações se acumulam: “tráfico de drogas, associação para o tráfico, colocar a vida e a saúde de terceiros em risco, falsificação, corrupção, adulteração de produtos destinados a fins terapêuticos e medicinais, aborto induzido sem o consentimento da gestante, estupro de vulnerável, charlatanismo, curandeirismo, sequestro, cárcere privado e constrangimento ilegal”, conforme enumerado pelo Metrópoles.
Vivemos em um momento no qual histórias de gurus, seitas e abusos estão fazendo sucesso na assim-chamada cultura pop. Quer dizer, basta ver os milhões de dólares que a Netflix está investindo em produções sobre casos assim: a guerra de Osho nos Estados Unidos, o culto extraterrestre de Claude Vorillon, a Colônia Dignidade, uma comunidade fundamentalista mormon, uma história estranha de uma seita centrada em um pastor alemão… e assim por diante.
Também podemos olhar para mega produções da indústria de videogame, e aqui temos um exemplo muito pertinente. O jogo Far Cry 5, da produtora Ubisoft, conta uma história na qual uma seita cristã apocalíptica, meio fundamentalista e meio pós-moderna, toma com armas um território em Montana.
A seita é liderada por Joseph Seed e seus irmãos. Joseph é um homem estiloso, tatuado e com uma barba média — poderia ser um modelo hipster — que se diz portador de uma revelação profética. Um de seus irmãos é um pregador motivacional que “limpa” os pecados das pessoas com tortura e com o que ele chama de “poder do sim”. A sua irmã, Hope, também lidera a seita e é tratada como uma “mãe” capaz de curar os adeptos. E como eles controlam os adeptos? Com espiritualidade barata, manipulação e muita droga.
Terrível constatar semelhanças de um jogo que retrata um cenário distópico de dominação social com uma situação que lemos nas páginas de jornais do Brasil. Só faltava uma seita como essa se levantar em armas e separar os territórios amazônicos do resto do país?
Esperamos que a história não evolua por esse caminho, mas devemos nos prevenir contra a contaminação coletiva dessas seitas — e armar nossos corações, pois essa mania da cultura com as seitas não parece estar reduzindo o risco de multiplicação delas.
Fora isso, a história que se desenrola nos jornais é a repetição de muitas outras. Um guru com limitações intelectuais mistura budismo e cristianismo, vende uma fórmula para arrebentar com o ego e “se libertar das ilusões”; acaba acusado de crimes sexuais: essa história não é original. Como sabemos, infelizmente sequer a morte de uma pessoa é uma ocorrência original na história envolvendo essas seitas.
É uma pena que a Amazônia sirva de cenário para essa história batida. Tristes trópicos, onde o povo caminha no desespero e até pessoas educadas, de classe média ou berço rico, são vítimas de esquemas de aproveitadores espirituais. Pior ainda que pessoas associadas ao Festival de Parintins tenham se tornado protagonistas de uma história tão trágica.
Em meio a mania de seitas, não podemos negar que essa história, por seus absurdos e peculiaridades, de fato tem algo de envolvente. Esperemos que no futuro o absurdo só seja superado na seara da ficção.
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Foto: Anderson Cardoso
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