Tristíssimo Brasil

Tristíssimo Brasil
19/09/2024 por Editorial

Nelson Rodrigues defendeu uma imagem mais positiva do brasileiro contra a "timidez do subdesenvolvido"

Amigos, o sujeito que nunca viu a nossa resenha dominical, na TV4, não sabe o que é o Brasil, nem imagina o que seja o brasileiro. Os nossos debates e conclusões são um dado fundamental para sociólogos, historiadores e políticos. Direi mesmo que se a mesa Facit (57) existisse no tempo de Euclides da Cunha, este a teria preferido a Canudos. Repito: — a nossa resenha ensina mais sobre o país do que os sertões, no princípio do século. 

Ainda domingo, houve uma que devia figurar, imediatamente, na Bienal. Imaginem vocês que sustentamos, há muito tempo, a seguinte tese: — o europeu é viril, mas leal; ao passo que o brasileiro é bruto e desleal. Vejam vocês que bela imagem fazemos de nós mesmos. Pois bem. E, domingo, um dos nossos convidados pôs nas nuvens o futebol europeu, a educação europeia, a polidez europeia, a correção europeia.

E, então, aconteceu o seguinte: — resolvi fazer a defesa do Brasil e do brasileiro. Mas não imaginei, Deus me livre, que estava cutucando, com a vara de cutucar, a ira da quase totalidade dos companheiros. E, de fato, é muito difícil elogiar o Brasil no Brasil, é muito difícil elogiar o brasileiro entre brasileiros. 

Vencendo a minha timidez de subdesenvolvido, comecei a dizer o seguinte: — o craque brasileiro é muito mais doce, mais educado, mais cavalheiresco do que o europeu. E argumentei com o nosso comportamento exemplar nos três últimos Campeonatos Mundiais. Nas três oportunidades, o brasileiro foi inexcedível na sua conduta disciplinar. Ninguém se lembra de um foul desleal dos nossos. Em 58, contra a França, fomos garfados da maneira mais deslavada. Tivemos que fazer três gols para que um valesse. 

O escrete patrício não se revoltou. Aceitamos tudo. A nossa paciência era humildade. Eu estava vendo a hora em que ia aparecer em cada ombro do escrete um passarinho. Em 62, a mesma coisa. O escrete evoluía em campo como um marquês de rancho, com peruca, sapatos de fivela e um manto azul com estrelas bordadas. Era pungente ver a doçura do nosso futebol, doçura que só o subdesenvolvimento explica. Note-se que, tanto em 58 como em 62, os nossos adversários andaram se comendo. O documentário alemão, de 58, apresenta cenas de uma selvajaria horripilante. 

....que espécie de prazer, que miserável volúpia, que satisfação demoníaca e suicida leva o brasileiro a cuspir na própria imagem como um Narciso às avessas?

Fiz o elogio do Brasil e do brasileiro. Esperei que, na pior das hipóteses, os presentes implicassem em tão veemente apologia. Esperei que, no dia seguinte, saísse nos jornais, como na Assembleia Legislativa: “O orador foi muito cumprimentado.” Pelo contrário: — quase me comeram vivo. Lembro-me que um dos companheiros, com uma mordacidade crudelíssima, lembrou: — “Em 58, o Brasil deu um olé!” 

Fiz um silêncio estarrecido. Primeiro, porque não me lembrava de nenhum olé. Segundo, porque nunca me constou que o olé fosse uma demonstração de bestialidade. Mas o colega insistia, de olho rútilo e lábio trêmulo: — déramos um olé na final de Suécia x Brasil. Confesso que não tive palavras. Sem entender mais nada, perguntava de mim para mim: — que espécie de prazer, que miserável volúpia, que satisfação demoníaca e suicida leva o brasileiro a cuspir na própria imagem como um Narciso às avessas? Por quê, meu Deus, por quê? 

Volto ao que dizia no início desta crônica: — no Brasil, o sujeito não será um estadista completo se não acompanhar, domingo após domingo, a nossa resenha. Em cada parte, em cada piada, em cada opinião, o que se sente é o Brasil, esse ilustre e desventurado Brasil, tão pouco amado pelos brasileiros.57- Grande resenha Facit foi uma famosa mesa-redonda da TV Globo; era formada por Nelson Rodrigues, Armando Nogueira, João Saldanha e outros grandes nomes. O programa discutia, principalmente, o desempenho dos times cariocas. 

Nelson Rodrigues para o Jornal dos Sports, 18/10/1967.

Publicado em "A Pátria de Chuteiras", Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, pp. 127-129.

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